quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Um chope com Rubem Fonseca

Debaixo de um sol escaldante, num Leblon a quase 40 graus, o porteiro pergunta qual o meu nome e já vai ligando para o apartamento indicado. Após um breve interfone, indaga qual o motivo da nossa presença. Estamos, eu e minha namorada, às 13h de uma sexta-feira, na porta do luxuoso prédio de Rubem Fonseca, a poucos metros do mar. Resolvo abrir o jogo: somos leitores do Rubem, queremos pagar um chope para ele. O porteiro fica sem reação. Olha novamente o casal com mochilas nas costas e um isopor nas mãos, e dá um sorriso. Depois de explicar a situação por telefone a alguém do apartamento, ele libera o portão e nos acompanha até o elevador.
“Estão esperando vocês”, diz o porteiro.
A recepção surpreende uma carioca cinquentona que entra no elevador no mesmo instante em que a gente.
“Nossa, vocês estão com sorte, viu? A livraria aqui do Leblon está cansada de
oferecer coquetel para os lançamentos do Rubem Fonseca, e ele nem responde os convites”, comenta, antes de descer num dos andares do prédio.
Para a decepção geral, quem está na porta do apartamento de Rubem Fonseca não é ele, mas a funcionária Dalva, uma negra simpática e atenciosa, de uns sessenta anos. Descalça, trajando um vestido azul, ela abre um sorriso e parece um pouco confusa.
“Vocês trouxeram uma encomenda, é isso?”
Não, viemos pagar um chope para o Rubem Fonseca, queremos beber com ele, vou dizendo, enquanto espio lá dentro a pilha de livros que ocupa uma parede inteira na espaçosa sala do apartamento.
 “Ah, ele não está aqui no momento. Mas deixe um nome e um telefone. Quem sabe ele não liga?”, aconselha.
Agradeço a cordialidade e vou saindo, ao lado de minha namorada. Deixo com Dalva o meu nome e o número do celular, com o DDD do Paraná. Ela escreve tudo num bilhete. Já que a ideia amalucada de beber com Rubem Fonseca não deu certo, o jeito é pegar uma praia no Leblon, logo ali na frente. Por desencargo de consciência, coloco créditos no celular. E acho engraçado aquilo tudo: até parece que o Rubem Fonseca vai ligar.

Então, ele liga  
Frio para danar, o mar do Leblon congelava qualquer mortal naquela tarde. Por sorte, tínhamos uma garrafa de Mojito, que matamos na areia, rapidamente, em goles desesperados. Meu celular tocou às 14h, interrompendo as doses de Mojito. Mergulhamos num silêncio tenso. Um olhando para o outro, sem reação. Peguei o celular na mochila. Vi, na tela do aparelho, que era o número de um amigo do Paraná. Para assustar a namorada, gritei é ele, é ele, o Rubem está ligando. Atendi eufórico.
“Alô, Rubem?!”
 Minha namorada arregalou uns olhos espantados.
“Rubem, é o Alexandre, sim. Tudo bem contigo, bicho?! Estou na praia, vamos encher a cara num bar aqui perto?”
Caímos na risada: a cena era improvável demais. Uma hora mais tarde, seria a vez do meu pai ligar. Atendi novamente, fingindo conversar com Rubem Fonseca. No diálogo com meu pai, que improvisou surpreendentemente bem o papel do escritor recluso, combinei que deixaríamos nossas respectivas mulheres em casa e, lá pelas 23h, partiríamos para uma noitada de esbórnia na Centaurus, a digníssima boate em Ipanema, famosa por suas acompanhantes de alto nível. Minha namorada já não deu bola para a piada nem para o itinerário noturno.
A bebida e os acepipes guardados na bolsa já tinham ido goela abaixo quando o celular tocou, novamente, às 16h. Desta vez, com um DDD do Rio de Janeiro. Não podia ser. Não mesmo. Devia ser o efeito alcoólico do Mojito. Conferi o número no painel.
“É ele, amor, é ele.”
Fui solenemente ignorado.
“Alô, é o Alexandre?”, indagou a voz rouca.
Rubem Fonseca tem uma voz rasgada. Entraria fácil numa banda de rock, blues ou num quarteto de jazz tocando Chet Baker. Também seria legal ouvir Rubem Fonseca cantando Bob Dylan.
“Olha, Alexandre, estou muito ocupado hoje. Mas se você passar aqui agora, eu posso te receber. Você consegue vir já?”
Mal tinha desligado o celular, já estava jogando o Mojito e a caixa de isopor no lixo, juntando a bolsa, gritando “é ele, é ele”, e minha namorada só acreditou que era mesmo o Rubem Fonseca quando me viu, atabalhoado, correndo pela areia, pagando pelas cadeiras e pelo guarda-sol alugados na barraca da praia. Deu para tirar a areia do corpo, trocar o chinelão pelo tênis e pegar na bolsa uma edição de “Amálgama”, o último livro de Rubem Fonseca. Por sorte, estávamos a uma quadra de distância.

Conselhos de mestre
Não sabia que Rubem Fonseca recebia os leitores em seu apartamento. Sei, por experiência própria, que ele conversa com todo mundo em suas caminhadas diárias.
Foi assim, numa dessas caminhadas, que abordei Rubem Fonseca nas ruas do Leblon, há cinco anos. Passei alguns minutos em frente ao seu prédio e, quando ele saiu, ficamos por quase meia hora conversando sobre literatura, reclusão, as perseguições na ditadura e o processo criativo. Aproveitei que o clima estava bacana e mostrei alguns continhos meus ao Rubem Fonseca. Pedi que ele lesse depois, se poderia me dar um retorno por e-mail. Tudo o que eu queria era saber se eu deveria ou não insistir naquele papo de ser escritor. Sei que escritores odeiam esse tipo de coisa, mas, como eu disse, o clima estava bacana. Sentado ao meu lado num banco da avenida Ataulfo de Paiva, Rubem Fonseca fez questão de ler os quatro continhos ali mesmo. Apontou erros que, só ao seu lado, pude ver claramente. Num dos contos, havia a mistura de algumas gírias, inseridas na fala dos personagens, e a gramática normativa dominava o resto da narrativa.
“O seu texto está todo escrito na norma culta, pode tirar essas gírias aqui. O seu texto não precisa disso”, criticou, rasurando os termos no papel. Aconselhou-me, ainda, a estender as narrativas, todas excessivamente curtas. “Você tem que abrir gavetas no texto. É assim que funciona com o romance”, disse.
Com os continhos em mãos, incentivou-me a escrever com dedicação, diariamente. “Seus contos são concisos, enxugados. Você tem voz própria, porra! Você não vai ser jornalista. Você vai ser escritor, porra!”, estimulou-me.
Qual outro grande autor perde tempo lendo coisas inéditas, no meio da rua, redigidas por escritores desconhecidos? E, encorajador, ainda faz apontamentos, dá dicas valiosas, manda seguir em frente? Rubem Fonseca, além de gênio, é um cara generoso.
Além da dedicação diária e da necessidade de reescrever os textos, quem quiser escrever bem deve, também, ter sua proposta literária definida. “O escritor tem de escrever para provocar. Para escrever o que todos querem ler, existem os jornalistas”, ironiza Rubem Fonseca. Essa é a fórmula do sucesso. Depois disso, é abrir os braços e correr para o reconhecimento, para a fama – ou, no caso dele, de se esconder de tudo isso, quieto no Rio de Janeiro.
A reclusão, no caso de Rubem Fonseca, não é garantia de anonimato. Enquanto estávamos sentados, ele foi reconhecido por uma moradora do Leblon. Era uma carioca muito branca, de uns sessenta anos. Fogosa, convidou o escritor para um jantar à noite, e ele recusou cordialmente. “Ela é muito velha para mim”, justificou, depois que a leitora saiu de cena.
 Cinco anos depois daquele encontro, Rubem Fonseca está prestes a me receber, agora ao lado de minha namorada, em sua residência. Não pretendo pentelhá-lo, novamente, com um punhado de textos. O que eu quero mesmo é encher a cara com ele.   

Fugitivo
“Vamos entrando, vamos entrando”, convida Rubem Fonseca, com um sorriso amigável, abrindo a porta de seu apartamento.
Ele não é alto, deve ter pouco mais de 1,60 metros. Veste camiseta, calça jeans e, nos pés, sapatos. Caminha devagar, quase mancando, até um dos sofás impecavelmente brancos da sala, repleta de livros. Tudo é bem organizado, privilegiando o espaço dos cômodos. Na sala ao lado, outra penca de livros surge em fartas estantes.   
“Hoje, o meu dia está uma correria. Acabei de voltar de um encontro com meu filho, à noite vou jantar com a minha filha e ainda tenho que encontrar uns documentos e enviá-los para o meu advogado. Ele já está me cobrando”, comenta, em tom de desabafo. 
A gente queria te pagar um chope no bar mais próximo, eu explico. Ele dá uma boa risada. Rubem Fonseca é gente fina à beça.
“Ah, eu parei de beber há muito tempo. E vocês sabem: eu vivo fugindo das pessoas”, diz, rindo.
“É mais difícil escrever hoje em dia?”, pergunto ao escritor, estendendo o exemplar de “Amálgama” para ele autografar.
“Ah, sim. Toda essa correria de advogado e documentos atrapalha a rotina. Não sobra tempo para escrever”, reclama.
No livro, Rubem Fonseca faz uma dedicatória amigável. E minha namorada diz o quanto gostou do brutalismo e do humor negro do primeiro conto, “O Filho”, uma das melhores histórias do “Amálgama”. No conto, escrito ao seu melhor estilo, Rubem Fonseca aborda o nascimento de uma criança que nasce aleijada, sem um braço.
“Que dó do bebê, que dó. Coitadinho dele”, responde Rubem Fonseca. O criador, para a nossa surpresa, tem, sim, piedade de suas próprias criaturas. “Mas você tem mais de 18 anos, não tem?”, pergunta Rubem Fonseca à minha namorada. “Este livro é só para maiores de idade”, avisa, rindo, enquanto estende o exemplar autografado.
Ele se levanta do sofá com um pouco de dificuldade. Justificável, afinal, para um senhor de 88 anos. Mas há uma dor no corpo, ele explica, culpa de um tombo recente.
“Só posso andar nas ruas com isso aqui”, comenta o escritor, seguindo para a outra sala. No canto da estante, ele pega uma bengala e exibe o seu novo acessório das caminhadas. “Sem ela, posso perder o equilíbrio”, justifica.
“E você continua charmoso”, elogia minha namorada. Eu engrosso o coro, também digo que ele está charmosão. Ele dá outra risada, abre um sorriso.
“E quando vem o próximo livro, Rubem?”, indago.
“Agora, estou trabalhando em um romance. A editora quer soltar só no próximo ano. Por enquanto, tenho só um working title, que pode mudar a qualquer momento”, diz.
“Quando você começa a escrever, sempre sabe como irá terminar a história?”, questiono.
“Não, nunca sei como vou terminar. As histórias mudam durante a escrita”, revela.
Já na porta do apartamento, agradeço a recepção e a rápida conversa. Ele está visivelmente feliz. “Da próxima vez, avisem antes que vocês virão e aí teremos mais tempo para conversar. E, se vocês forem à praia, tomem cuidado. Vão pela manhã, não fiquem lá à tarde. Olha a pele da sua namorada, Alexandre, é tão branquinha. Esse sol é perigoso. Cuide bem dela, viu? Porque ela é muito bonita; e você, muito feio”, aconselha Rubem Fonseca, arrancando uma boa gargalhada nossa.
Evitamos a praia, seguindo o conselho do escritor, e corremos pelas ruas do Leblon à caça da bodega mais próxima. Na mesa do Jobi, acalmamos os ânimos e tomamos um porre para celebrar o encontro com deus.   

Publicado no site da revista Cult (fevereiro de 2014)

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Candido, o pugilista

Antonio Cândido não foi apenas um professor, foi um pugilista. Deu ganchos certeiros em Clarice Lispector, mandou cruzados que atordoaram Oswald de Andrade, emendou jabs desconcertantes em outros figurões literários. E fez tudo isso com técnica e elegância, justificando, de uma forma extremamente convincente, as necessidades de seus golpes.

As bordoadas eram no calor da hora, com as obras recém-lançadas, e ele sempre esteve consciente dos riscos que corria — um crítico que não compreende uma obra é ignorante por desconhecer as inovações ou alguém com uma leitura tão poderosa, capaz de notar erros que autores e editores ignoram?


Essa postura combativa, que ele assumiu tão bem, com coragem, independência e pulso firme, é o que mais faz falta no cenário literário atual, com pseudos-críticos frequentemente assumindo uma postura covarde e submissa diante de obras de qualidade questionável, arremessando elogios aleatórios em busca de coleguismo e algum espaço no meio literário. A cada golpe desferido nos erros de uma obra, Antonio Candido sabia que cumpria um dever cívico: provocava uma reflexão — dolorosa, para alguns leitores e autores — sobre a qualidade da escrita produzida no Brasil.

Quando visitei Antonio Cândido, há dois anos, me surpreendi com seus passos ágeis, com suas mãos que pareciam pesar mil quilos, com os olhos enérgicos e tão temidos — olhos que enxergam mais do que nós —, com sua memória capaz de armazenar mínimas lembranças e de retomá-las, sem esforço, a qualquer momento.

Lembrava, de imediato, os detalhes e o ano longínquo de uma palestra concedida em minha cidade, Maringá (PR), e também recordou, rapidamente, o momento em que foi apresentado ao Vampiro de Curitiba.

Era ali, em meio a porteiros e vizinhos, que Antonio Candido recebia seus leitores e alunos de todo o país. Bastava interfonar. Aos 96 anos, ele não parecia um professor aposentado da USP, mas, sim, um atleta em plena forma. “Eu era, sim, um crítico severo. Se achava o romance ruim, escrevia uma crítica negativa. Um dia, depois que critiquei um autor, me avisaram que ele havia comprado uma bengala para me dar uma sova. Fiquei um bom tempo com medo”, comentou, com uma boa gargalhada, antes de acrescentar: “Mas isso é essencial: o crítico literário tem, sim, que falar mal”.

Antonio Cândido publicou ensaios antológicos:  Dialética da malandragem, O poeta itinerante  e A educação pela noite são apenas alguns deles. Ensinou sobre a necessidade de estabelecer diálogos multidisciplinares, defendeu as proezas das transgressões — foi o primeiro acadêmico a reconhecer as maravilhas das letras modernistas — e ainda nos deu preciosas lições de boxe. Mais do que nunca, Antonio Candido faz falta nos ringues literários. Agonizando na lona, quem perde a luta é a literatura brasileira.

Publicado no Correio Braziliense (13/5/17)

quinta-feira, 2 de março de 2017

Um açougueiro na prefeitura

No mercadinho Camarada, a área destinada ao açougue, com suas paredes brancas e facas dispostas em cima das mesas, tinha 30 metros. Dentro daquele espaço, um espaço generoso para apenas um açougueiro desossar carnes durante três horas por dia, era possível contemplar os clientes e as estantes de produtos de limpeza, caixas de leite, sabão em pó, as geladeiras abarrotadas de refrigerantes, os freezers com comidas congeladas. A primeira parte da jornada era ali, trajando galochas, avental, roupas brancas. A segunda, com as carnes já desossadas, era mais prazerosa: no balcão, lidando diretamente com as pessoas, estendendo pacotes de carnes, ouvindo críticas e elogios, conversando sobre as aspirações e frustrações da clientela. Dos 13 aos 18 anos, Rogério Aparecido Bernardo encarnou o açougueiro do mercadinho com paixão. Descobriu, atrás do balcão, que 60% dos moradores de Ângulo gostam de bisteca e 20%, de linguiça. E que mulheres são incumbidas de comprar as carnes de segunda a quinta, enquanto os homens, religiosamente às sextas, vão pessoalmente ao mercado para adquirir as carnes do fim de semana. Mas não eram as estatísticas privilegiadas dos hábitos gastronômicos dos conterrâneos que o fascinavam. Gostava do contato com o público, de ajudar os clientes, de ouvir seus desabafos. Decidiu, no meio do mercado, virar político.

Concomitantemente à jornada no açougue, Rogério graduou-se em Administração e, em seguida, disputou uma cadeira na Câmara dos Vereadores. "Fui o mais votado da história da cidade, com 187 votos, e depois cheguei à vice-prefeito", diz, sentado em um banco na praça da Prefeitura de Ângulo, enquanto acena para o motorista de um Gol branco em resposta à buzinada e ao grito de "Ôôô Rogééério!".

Aos 34 anos, o prefeito Rogério Aparecido Bernardo conhece todos os 2.969 moradores de Ângulo. A cada três minutos na praça, alguém berra seu nome e, carinhosamente, acena de carros e caminhonetes. É abordado, ainda, por dois sujeitos cheios de papéis que analisam os buracos de algumas ruas do município, e pede que a dupla encaminhe o relatório para seu e-mail, e por uma simpática senhora que o interpela para reclamar de uma árvore no quintal de casa. "Me ajuda, Rogério. Se dá um pé de vento, essa árvore cai pra cima de mim e derruba meu barraco." Cordial e atencioso, ele promete ajudar a moradora. "Vou mandar alguém lá na sua casa, Dona Terezinha. Não se preocupe." E a senhora segue rumo aliviada, não sem antes agradecer a atenção do prefeito que dá expediente no meio da praça, numa quarta-feira à tarde, enquanto posa para o fotógrafo do Diário. "Eu amo essa cidade. Minha vida política pode ir adiante, mas eu nunca sairei daqui. Em cidades grandes, como Maringá, é muito difícil um político ficar em plena praça e conversar com as pessoas", comenta.

Ângulo deixou de ser distrito para virar cidade em 1990. A maioria dos moradores trabalha em Maringá, em supermercados, açougues, escritórios, lojas de roupas e sapatos. E há quem trabalhe, também, em um parque aquático em Iguaraçu, onde cerca de 10% dos 87 funcionários são de Ângulo, sem contabilizar as contratações temporárias nos finais de semana. São poucos os que trabalham e vivem em Ângulo que, com seus 106,21 km, pode até parecer pequena para os motoristas que cruzam a PR-317 e não avistam arranha-céus nem qualquer construção imponente, mas, para orgulho dos moradores, é uma cidade maior, inclusive, do que alguns países, como Nauru (21 km²) e Tuvalu (24 km²), na Oceania, e San Marino (60 km²), na Europa.

Os atrativos da vida noturna de Ângulo são o Espetos Bar, que serve torre de chope, a Lanchonete do Julião, com pizzas e porções, e a Sorveteria da Viviane, com opções de picolés. À noite, moradores de todas as idades se unem na praça da igreja São João Batista. Ali, quando garoto, aproveitando as locuções que o dono de uma lanchonete fazia entre uma canção e outra, Rogério mandava, por escrito, declarações românticas às moçoilas, dedicando-lhes canções de Chitãozinho & Xororó, e esperava, ansioso, a vinda triunfal do carro da "Explosão do Amor", anunciando no microfone suas intenções amorosas. "Eu fui um romântico, né?", lembra, com a risada que só os grandes apaixonados sabem dar.

Romantismo, hoje, só com a esposa, a farmacêutica Terezinha, 30, com quem teve o filho Matheus, 2. Residindo com a família em um sobrado a 150 metros da prefeitura, Rogério vai trabalhar todos os dias com o veículo oficial. Raramente faz o percurso a pé, seguindo o exemplo da maioria de seus conterrâneos, que, em Ângulo, preferem passear em seus próprios meios de transporte. Metade dos moradores, de acordo com o IBGE de 2015, tem veículos próprios: 48% preferem os automóveis; 19%, as motocicletas; 13%, as caminhonetes; e 0,85%, os caminhões trator.

Filho de um mestre de obras e de uma trabalhadora rural, Rogério ainda hoje volta com frequência ao endereço onde atuou como açougueiro. Há três anos, sua família adquiriu o mercadinho e fez uma série de modificações estruturais para que o local se transformasse no mercado Paladar, sob a administração de sua mãe e com o irmão assumindo a desossa das carnes. É de lá que saem os bifes dos churrascos que unem a família e os amigos nos finais de semana. É uma rotina simples e de alegrias genuínas, completada por uma e outra ida à praça da igreja, onde jovens sonham com os dias em que Ângulo terá McDonald's e dezenas de casas noturnas - inclusive de rock. Os mais velhos, na mesma praça, almejam um dia receber ali o show do rei Roberto Carlos, e se isso não acontecer – o rei, realmente, é um tanto complicado –, eles já vão ficar satisfeitos com bailes de gala intermináveis e jantares italianos em trattorias que terão fachadas brilhantes, com detalhes verdes e vermelhos, iluminando a pacata Avenida Brasil.

Publicado no Diário (5/2/17)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Lições de Adalberto

A Real Fábrica de Tabacos, em Sevilha, é um lugar charmoso e trágico. O edifício neoclássico está imortalizado no romance de "Carmen", de Prosper Mérimée, e na ópera homônima composta por Georges Bizet. No mesmo cenário em que Don Juan esfaqueia e assassina Carmen, Adalberto de Oliveira Souza assistia a simpósios de literatura, com trabalhos sobre Proust, Joyce, Cervantes e outros gigantes.

Debaixo do calor insuportável de julho, Adalberto sentiu o corpo entrar em corrosão. Ele ministraria, a convite da Universidade de Sevilha - localizada no mesmo prédio da Real Fábrica -, uma palestra sobre Ronald de Carvalho, que nunca chegou a acontecer. O estômago estava inchado e queimava: era como se o próprio Don Juan enfiasse a faca lentamente em sua barriga, e não em Carmen.

Atendido no pronto-socorro da instituição, Adalberto foi imediatamente conduzido ao hospital Virgem do Rocio, onde foi operado do apêndice. A cirurgia, que em geral leva sessenta minutos, demorou oito horas para ser finalizada. "Ele pode morrer: é bom que você saiba", disse o médico a uma colega que o acompanhava.

Deitado no hospital, Adalberto passava a vida a limpo. Gostava de lembrar os seis anos que morou na França, entre o Mestrado ao Doutorado, especialmente a temporada de um ano num apartamento na Rue Mignet, no oeste de Paris. Para quem gosta de literatura, pintura e música, não há lugar melhor no mundo do que Paris.

E Adalberto aproveitou como pôde: batia cartão pelo menos uma vez por semana no Centro Georges Pompideu, acompanhando mostras temporárias e revendo Picasso, Van Gogh, Monet e Pollock, seu favorito. Entrou e saiu dezenas de vezes do Louvre - compreensivelmente, perdeu as contas. Levava tela e pincel para as ruas do Quartier Latin, pincelando a arquitetura grandiosa de Paris que, a todo momento, parece lembrar aos homens a sua real insignificância.

Na Radio France, assistia com frequência a orquestras de câmara retomando as estranhezas de Stockhausen e as inovações de Schonberg e Stravinsky, quase sempre nos auditórios menores, porém sempre lotados da emissora, ao lado de outras cinquenta pessoas.

Nos 21 dias em que ficou internado, Adalberto lembrou, também, de São Paulo. Foi bom concluir a graduação em Letras Português-Francês pela USP, onde teve aulas com o mitológico Antonio Candido. "Eram maravilhosas e ele, muito bem-humorado. Só havia uma coisa que Candido não tolerava: qualquer piada ou manifestação racista", refletia.

Algumas cenas da época universitária, em plena ditadura militar, se repetiam. O sujeito moreno, de 1,75 metro, nem gordo e nem magro, que frequentava as aulas de russo. Era um aluno estranho, sem interesse em Tolstói e Dostoiévski, e os rumores o apontavam como sargento infiltrado na sala de aula. "Era mesmo um espião." E achava graça no fato do governo acreditar que, nas turmas de russo, a porcentagem de comunistas era maior do que em outros cursos. Na realidade, quase todos os calouros cursavam Português-Russo porque era mais fácil do que Português-Inglês: não tinha nada a ver com ideologia.

E as cenas de seu encontro com João Cabral de Melo Neto, no apartamento do bibliófilo José Mindlin, na companhia de uma colega da graduação e do dramaturgo Plínio Marcos, também surgiam à tona. Dois jovens universitários entrevistando um dos maiores poetas brasileiros. "Eu sou um sujeito sem nenhum interesse como pessoa", definiu-se João Cabral, encarando firmemente Adalberto, e a voz do poeta invadia, agora, o leito do hospital espanhol, como se alguém soprasse poesia a seus ouvidos.

"Uns reagem, outros não", disparou o médico, conferindo os exames na frente de Adalberto. Recebida a alta, ele voltou para Maringá. Nunca esqueceu a quase morte há exatamente uma década, e reagiu. Publicou seu terceiro livro de poesia, o ótimo "Corrosão", aposentou-se há alguns anos da universidade e hoje divide seu tempo entre dois espaçosos apartamentos que tomam um andar inteiro de um edifício na XV de Novembro.

Mora sozinho, na companhia da biblioteca que chegou a três mil obras - hoje ele não tem um número exato -, que tomam as salas do 401, e entre 31 de seus quadros figurativos e abstratos, emoldurados no 402.

"Eu me sentia muito perdido quando vim para Maringá. Não havia muito o que fazer por aqui. Hoje, tudo mudou. Há eventos importantes, como a Festa Literária Internacional de Maringá, há vida cultural", diz, sentado à mesa, cercado por quadros.

Aos 65 anos, Adalberto quer expor suas pinturas, escrever poemas, pincelar a vida. Fala tudo com muita calma e serenidade. Relembra a mãe, professora do primário, e o pai, boiadeiro que não conheceu, morto quando ele completava um mês. O pai, 36, comunista e alcoólatra, levou um tiro numa briga de bar em Palestina, no interior de São Paulo, a uma quadra de casa. O disparo foi feito por um soldado que, anos depois, dizem, também foi assassinado. Adalberto nunca soube o nome do homem que matou seu pai e o crime nunca foi solucionado. Hoje, depois de tantos anos, não parece ter rancor do assassino que o privou, para sempre, da convivência paterna.

Num apartamento calado - os únicos sons vem dos pedreiros gritando na construção ao lado -, ele só se recusa a falar dos amores passados e presentes. "Como nunca deram certo, prefiro o silêncio", responde, pela primeira vez um tanto melancólico, remexendo uma cristaleira para lá e para cá, chacoalhando segredos invisíveis.

Publicado no Diário (15/1/16)

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Rebite em branco e preto

A cidade toda parava na quarta-feira. As famílias se reuniam em casa, das 20h à 0h, para ouvir o programa "Noite e Festa", apresentado pelo vozeirão grave de Brasil Filho, semanalmente, na Rádio Cultura. Muitas moças e senhoras e até alguns rapazes não se contentavam com o áudio do programa. E faziam questão de enfrentar a fila para pegar um dos 250 lugares disponíveis no auditório da rádio, localizada na Avenida Herval com a 15 de Novembro. Em 1968, aquele era um dos endereços musicais mais cobiçados pelos instrumentistas da região. Ninguém menos que Erasmo Carlos e os Incríveis chegaram a dar o ar da graça no "Noite e Festa", concedendo entrevistas e entoando seus sucessos. Por isso mesmo, o garoto que acabava de chegar ao centro do palco, escoltado pelo talentoso Geraldinho do Cavaco, estava tão nervoso. As mãos tremiam, o peito batia forte. Sabia que era uma oportunidade única, que deveria fazer bonito. Um erro o condenaria às piadas e à humilhação. Um acerto, talvez, o empurraria para dentro daquele universo misterioso, em que alguns nomes viram estrelas, e outros, de tão grandes, chegam a formar verdadeiras constelações. O garoto abriu o peito e cantou sua própria história: "Eu sou o negro gato de arrepiar /

E essa minha vida é mesmo de amargar / Só mesmo de um telhado aos outros desacato / Eu sou o negro gato."

Presente
Entoando os versos atrás do balcão da Sapataria, não é difícil imaginar Rebite no palco. A voz ainda está firme, ligeiramente rouca, e mantém algo do grave que o consagrou em 1968, no programa "Noite e Festa", garantindo seu ingresso em três bandas maringaenses: S.O.S (de 69 a 73), Os Cometas (73 a 81) e Escala Company (86 a 96). Mesclando o rock sessentista da Jovem Guarda com veneirão, xote e muito samba de raiz, o garoto finalmente havia entrado no mundo da música. O ápice da carreira foi abrir os shows de Fafá de Belém, Martinho da Vila, Luiz Ayrão, Sandra de Sá e João Bosco no Country Club e na Apoteose. Como crooner, foi responsável pelas canções nas matinadas do Colégio Vital Brasil e nos palcos do Barril (o primeiro bar em Maringá a ter música ao vivo), no Hermácia (onde hoje é o CIQ HM), no Boliche, na Passarela e no Kanequinho (todos os três no mesmo ponto da Paraná) e nos bailes do Vale Azul (hoje abandonado e depredado). "É uma pena: a cidade se transformou, mas não há nada para preservar esses lugares", lamenta Rebite, interrompendo o concerto da sandália marrom para atender o telefone fixo, que acaba de tocar. "Sim, tá falando com ele: Rebite em branco e preto", comenta, rindo, vestindo uma camiseta branca e calça jeans azul.

A Sapataria tem um longo balcão branco que dá para a Avenida Joubert de Carvalho, 1008. Atrás do balcão, cinco estantes de ferro acumulam sacolas com sapatos e tênis, entre encomendas que já estão prontas e as que ainda serão consertadas. Quatro máquinas de costura, dezenas de cadarços coloridos e cintos em diversas cores, organizados em seus próprios cantos, completam o local de trabalho. Com os olhos no trabalho e os ouvidos na rua, Rebite acompanha a conversa de uma mãe exigindo que o filho termine com a namorada, ouve um homem sussurar pelo celular o horário de um encontro com outro homem, observa o pedinte com um espesso ferro de oitenta centímetros na mão clamando por trocados. Há 45 anos, observa a cidade desse ângulo. Escuta tudo e todos, e frequentemente é cumprimentado pelos amigos, tal como fazem um cego ("Ô, negão!"), um empresário ("Ô, urubu!") e um velho ("Ô, pau de fumo!"), que passam ligeiros demais para uma conversa, estendendo gestos e sorrisos afetuosos. A todos, Rebite responde com acenos e sorrisos. "Eles me tratam com muito carinho: trabalhar assim, sempre conhecido, é uma farra."

Mala de histórias

Um sujeito grandalhão, acompanhado pela filha e outras duas mulheres, se aproxima do balcão.

"Ô, Rebite! Quanto tempo!", diz, estendendo uma mala marrom.

"Ô, rapaz! Mas que beleza de mala, hein?!"

Numa rápida avaliação, Rebiote nota que é preciso trocar o tecido revestindo o interior. Quando notou que a mala apodrecia no armário, o advogado Adalberto de Souza, 43, se recusou a mandá-la para alguém consertá-la em São Paulo, onde reside. É uma bela mala, adquirida há quatro anos em Florença. Serviu para trazer parte das roupas usadas na viagem e algumas peças novas, adquiridas na Itália. Esperou chegar o final de ano para vir a Maringá, onde os familiares se reúnem anualmente.

"Meu pai é cliente do Rebite a vida toda. O trabalho é de muita qualidade", garante o advogado cliente.

"Vamos jogar couro nela, que tal?", sugere Rebite.

"Vai ficar caro demais. Vamos de brim mesmo", decide o cliente. "Sabe o que é bacana? Voltar aqui e lembrar de tudo. Ver como a cidade vai mudando aos poucos. O tráfego, que hoje é bem mais intenso. As calçadas, agora cheias de gente para todos os lados. Acho que gostava mais de Maringá quando ela era deserta", diz o cliente, em tom saudosista, olhando para a Joubert de Carvalho.

O orçamento ficará pronto dali a cinco dias. Rebite anota o número do celular. Não há dúvidas que o cliente autorizará o conserto da sua mala italiana.

Pertinho de Pelé
O futebol era a casa de Rebite. O pai trabalhava como roupeiro do Grêmio e a mãe lavava as roupas dos jogadores. Ainda garoto, começou a engraxar as chuteiras dos jogadores nos vestiários. Mais tarde, em 1969 e entre 1974 a 76, assumiria o posto de goleiro do Grêmio. No Willie Davids, participou de momentos históricos, como a antológica vitória de 11 a 1 do Santos. Ainda adolescente, Rebite, à beira do gramado, estava a poucos palmos de distância de seus ídolos futebolísticos. Como gandula, lançava, por trás do gol, as bolas direto nas mãos de Gilmar. A mesma bola que segundos depois, estava nos pés de Pelé, Pepe e Coutinho. A gloriosa proximidade, que resultou na humilhante derrota em casa, não incomodava os 20 mil torcedores que berravam o nome de Pelé pelas arquibancadas. Com Rebite, não era diferente. O coração só bateria naquela mesma intensidade, ameaçando pular goela afora, alguns anos mais tarde, quando ele resolveria cantar "Negro Gato", no programa "Noite e Festa", deixando sua marca na música local. O garoto, que queria pertencer apenas ao universo das canções, hoje, aos 64, é um homem de muitos mundos: o mundo do futebol, dos flagras na Joubert de Carvalho, dos sapatos que cruzam calçadas e amam e vivem e morrem.

Publicado no Diário (8/1/2017)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Sempre de portas abertas

Rua Duvivier, Copacabana, a poucos metros do mar. Era ali, no primeiro andar de um prédio antigo, que Ferreira Gullar escancarava seu apartamento para leitores desconhecidos. Ao porteiro, bastava informar o nome e a cidade de onde você vinha. De segunda a segunda, de manhã ou à tarde, o poeta autorizava o acesso para quem quer que fosse, pedindo que a visita subisse. O próprio Gullar, magrelo, alto, sorridente, surgia à porta, cordialmente, já apontando uma longa mesa de madeira. Diante da sala, repleta de quadros, esculturas, colagens e livros, dava conselhos a jovens escritores, criticava as artes plásticas contemporâneas, maldizia meia dúzia de políticos e refletia sobre seu fazer literário, disparando metáforas e sutilezas poéticas.

“A vida é pouca”, disse-me Gullar, em um dos nossos dois encontros sem hora marcada. E, na frente dele, emendei o restante dos versos do poema No mundo há muitas armadilhas: “A vida é louca, mas não há senão ela. E não te mataste, essa é a verdade”. Até o maior poeta brasileiro estende o mais longo dos sorrisos quando vê seus versos ganharem vida na trajetória de outra pessoa.

Contato
Nesses encontros improvisados, não havia pressa. Os relógios paravam. As buzinas silenciavam. Os quarenta graus, ali, não te infernizavam. Gullar fazia dedicatórias em quantos livros fossem necessários. Posava para fotos. Até mesmo quando pedi que assinasse meu ukelele, que ele pensou ser um cavaquinho, não recusou o autógrafo. Figura cada vez mais rara em eventos literários, ele tinha consciência do distanciamento de seus leitores. Sabia, sim, de sua importância. Sabia que era preciso, de alguma forma, manter algum contato com seu público. O apartamento da Rua Duvivier era uma ponte, sem mediadores, entre autor e público — jornalistas, estudantes, professores, leitores em geral. E nas vezes em que me recebeu, em 2009 e 2013, despediu-se com o mesmo sorriso gentil, até rejuvenescido pelo encontro.

Enquanto poeta, Gullar serviu-se de revoltas e espantos, medos e cenas triviais. Qualquer tema, em suas mãos, rendia grandes versos. O osso da própria perna. O alto preço do feijão — que, ainda hoje, não cabe no poema. Um gato andando pelo apartamento. O desemprego. O número de crianças mortas no Piauí. O branco do açúcar que adoça o café. Um homem — eu?, você? —, à procura do grande amor, olhando para uma vitrine no meio da Avenida Nossa Senhora de Copacabana. A poesia, ensina Gullar, é onipresente.

Quanto à morte, deixou belos poemas, como Morrer no Rio de Janeiro, Os mortos e Despedida. Este último, relido agora, arrepia a alma ao traduzir o sentimento do nosso último grande poeta:

“Eu deixarei o mundo com fúria.
Não importa o que aparentemente aconteça,
se docemente me retiro
(…)
Num alarido de gente e ventania
olhos que amei
rostos amigos tardes e verões vividos
estarão gritando a meus ouvidos
para que eu fique
para que eu fique
Não chorarei.
Não há soluço maior que despedir-se da vida.”

Gullar pode até ter sido um homem de carne e de memória, de osso e esquecimento, brasileiro, maior, casado e reservista, mas, definitivamente, não era um homem comum. Homens comuns não deixam legados líricos, nem precisam escancarar suas residências a desconhecidos íntimos. O poeta maranhense, na verdade, jamais morrerá. Uma parte de Gullar estará sempre dentro daquele apartamento, na Rua Duvivier; uma parte de mim, também.

Publicado no Correio Braziliense (5/12/16)

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Raspadinha democrática

Rapazotes com o mesmo cabelo do Xororó e meninas de longos saiotes cruzam a Avenida Mauá, de olho nas Belinas e Fuscas. A sete passos do portão do colégio de madeira, outros estudantes se aglomeram em volta de uma carriola de algodão-doce. A foto, feita em 1982, hoje está pendurada na secretaria do Colégio Santo Inácio. Quase tudo mudou. A estrutura do colégio. Os pedregulhos da avenida. As roupas das moças. Mudaram os carros e os cortes de cabelo. Aparentemente, nada resistiu ao tempo. Mas basta lançar um olhar mais atento à foto para notar a única brava resistência: Alair Arengue, hoje com 66 anos, e seu carrinho de algodão-doce permanecem na mesma calçada do colégio, a exatamente sete passos da entrada.

Vestindo uma camisa branca, com três botões refrescando o calor infernal - o mesmo calor dos tempos d'outrora -, o ambulante escapa do sol debaixo do boné branco e vermelho. Há 53 anos, Alair oferece raspadinhas, algodão-doce e chicletes nesse ponto da Mauá, em frente ao Santo Inácio. "Durante 32 anos, eu ficava aqui pela manhã e, à tarde, fazia o Marista. Hoje tô velho. Só fico aqui", diz, sossegadão, encostado em seu carrinho adocicado.

De raspadinha em raspadinha, Alair foi esquentando a poupança. Comprou casa própria, há 35 anos, na Vila Operária e, desde que adquiriu um Fusca em 1973, nunca mais abriu mão de um carro próprio. Hoje, aliás, ele tem dois: um Corsa 1996 e uma Safira 2008.

Testemunha ocular dos sentimentos maringaenses, presenciou o amor tomar forma, à sua volta, com os 79.873 casais de adolescentes que, cheios de paixão, engataram namoros bebericando a mais doce das raspadinhas. Também viu o amor morrer, com os 79.871 casais de adolescentes que, tempos depois, empunhando a mais amarga das raspadinhas, terminaram seus relacionamentos. Ao lado do carrinho, Alair ouviu brigas de mães com seus filhos, brigas de pais com suas esposas e sustentou conversas com 76.324 crianças esquecidas pelos pais à frente do colégio, após o término das aulas. Culpa dos tantos atrasos paternos? Alguma reunião importante? Algum amado secreto? Alguma irrecusável amante?

Político, eu?!

Fonte ignorada por historiadores, conhece detalhes que ninguém mais recorda. "Bem aí onde tá a igreja tem um grande poço de água que atende tranquilamente toda a cidade. Os maringaenses, isso lá no passado, formavam filas pra pegar água nesse poço. Depois de um tempão, a igreja ficou com o terreno. E os padres fizeram questão de arrumar o tal poço. O tanto de água que os padres daí têm acesso, viu? É coisa de louco", diz, sentadão na banqueta na calçada, com a mesma tranquilidade de quem conversa no sofá da própria casa.

Embora o ponto de Alair seja fixo, os maringaenses podem encontrá-lo, de tempos em tempos, dentro de suas próprias residências. Incontáveis candidatos a prefeito já se apropriaram de seus sorrisos e acenos em propagandas na TV – muitos, inclusive, fizeram questão de serem filmados abraçando e conversando com o Tio da Raspadinha. "Acredita que até já me convidaram pra virar vereador?! Recusei na hora."

Orgulhoso da clientela, elenca os nomes que, em tenra idade, já se regalaram com sua raspadinha. "O Silvio Iwata. O Dr. Sala. O Darlei, do Bom Dia. O Hiran, do Santa Rita. O Turkinho, do Monte Líbano. Pena que, quando crescem, já não compram raspadinhas", lamenta. Até mesmo os maiores adversários políticos encontram, nas raspadinhas de Alair, algo em comum. "O Ulisses Maia foi meu cliente dos cinco aos nove anos. O Silvio Barros também vinha direto quando era garotinho. Os dois ainda lembram de mim." A receita para agradar a gregos e troianos? "Não faço ideia. O que sei é que minha raspadinha e meu algodão-doce são os mais tradicionais da cidade."

Circular por aí com dinheiro no bolso rendeu alguns momentos tensos. Em dois fins de tarde, Alair tomou voz de assalto. Dois sujeitos trintões, mal-encarados, sempre na Mauá. "Eram grandalhões desse tamanho, ó. Mas não contavam com isso", comenta Alair, tirando de um compartimento secreto, no teto do carrinho de doces, um assustador facão de açougueiro. "É pra cortar o gelo. E também pra me proteger. Fugiram tudo em desespero ali pra frente."

Encontro fatal

"Manhêêê, me dá?", pergunta um garotinho de cinco anos, que acaba de se aproximar, estendendo os dois braços na direção das raspadinhas.

A mãe hesita um instante.

"Meu filho nunca provou uma raspadinha."

"Nunca?!", surpreende-se Alair.

"Quanto custa?"

"Tem de R$ 3, R$ 4 e R$ 5: cê que manda."

"Vê a de R$ 5."

"Seu filho nunca mais vai ser o mesmo: depois que provar, quando me ver por aqui, vai ficar louco e chamar pelo Tio da Raspadinha", avisa, entregando a bebida colorida.

As duas mãozinhas agarram, firmes, o copo de plástico. O menino arregala os olhos, surpreso com o azedinho da menta harmonizando perfeitamente com o doce da groselha. Dito e feito: quando verá, novamente, o Tio da Raspadinha?

Perfil publicado no Diário (27/11/2016)